“Portfólios” e a queda de identidade da Língua Portuguesa
Ao estudar idiomas de outros lugares e tempos, percebe-se neles um fenômeno curioso, resultado do encontro de culturas (e linguagens): a troca de palavras.
Vê-se com certa facilidade tal fenômeno em ação em qualquer ambiente globalizado. No ambiente corporativo, símbolos se manifestam em sobreposição de significados, e o preferido é o estrangeiro. Já não se fazem mais reuniões, mas sim meetings; e chamadas de voz deram espaço às calls.
Ainda num contexto corporativo, um fenômeno derivado deste empréstimo também aparece na palavra da língua inglesa “portfolio”. Veja, esta palavra não possui uma tradução direta em português no significado que aqui é lhe dado. Portfolio, no contexto em questão, significa uma coleção, em qualquer formato, de registros e apresentações de trabalho, estudo, e qualquer ação relevante de uma pessoa, tendo em vista compartilhar suas capacidades seja com um cliente ou empregador.
No Brasil, este termo foi aportuguesado — preguiçosamente — como “portfólio”. Ou seja, houve a adição de um acento agudo. Então agora eu tomo a liberdade (pois a dissertação é minha) de escrever em um tom mais pessoal para perguntar a você, leitor(a): como acentuamos uma palavra?
Pois uma primeira etapa decente é separá-la em sílabas. Vamos fazer isso com “portfólio”:
POR · T · FÓ · LIO
POR · T · FÓ · LI · O
(Perceba que as construções PORT · FÓ · […] não foram preferidas aqui devido ao encontro consonantal imperfeito)
Pode ela ser tanto uma paroxítona com ditongo crescente quanto proparoxítona terminada em hiato. Realmente, deve ser acentuada. Mas há algo estranho nessa separação silábica, e eu imagino que seja um detalhe bem perceptível: temos uma letra “T” isolada no meio da palavra.
Vejamos de maneira breve um exemplo de outra palavra com o T mudo: deficit. Outro estrangeirismo, perdeu o acento que tinha (“déficit”) em seu aportuguesamento justamente pela inexistência de uma separação silábica (ou estrutura mórfica) que o justificasse. Veja:
DE · FI · CI · T
Existe nessa palavra uma incompatibilidade com a língua portuguesa. Visto que sua sílaba tônica é a quarta (DE), conclui-se que ela não é oxítona nem paroxítona, claro, mas tampouco proparoxítona.
Não há, na língua portuguesa, acentuação em sílaba anterior à antepenúltima. Deficit é, portanto, um estrangeirismo que não recebeu um termo correspondente no idioma, como seria o caso, por exemplo, de leiaute (layout) e esqueite (skate).
Portfolio, em contrapartida, possui uma estrutura completamente compatível para se adaptar à morfologia do português. Como citado, é uma paroxítona (preferida no Brasil, mas mais aceita como proparoxítona em Portugal) e o fonema da terceira sílaba é facilmente adaptado com a adição da letra I, como segue:
POR · TI · FÓ · LIO
Linda. Perfeita. Uma bela construção que mal se percebe que é derivada de estrangeirismo. Completamente de acordo com a morfologia portuguesa.
Este texto é também uma súplica à Academia Brasileira de Letras para que reconheçam “portifólio” como a grafia oficial (ou sua variante lusitana, portefólio) do termo no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.